quarta-feira, 23 de abril de 2014

TRATAMENTO DE CANAL

Antigamente um dentista resolvia todos os seus problemas. Arrancava, obturava, tratava canal, colocava aparelho, só não tirava radiografia, se você tivesse que tirar uma chapa tinha que ir na Saúde Pública. Hoje, o odontólogo te recebe com uma dor do cão, bate a tal chapa, olha o celuloide, afirma “é canal” e empurra o amigo para o especialista. O expert fura teu dente, trata e quando tem que fechar te remete para um terceiro, um Rodin dos molares perfurados, um Michelangelo das porcelanas. É a superespecialização.

Caminhamos no mesmo sentido no futebol. Aconselhei Marcos Guilherme a copiar D’Alessandro e amigo me socorre, diz que Marquinhos é um meia atacante que avança e chega na frente, não é o articulador  que todos desejamos. Pronto, fiquei sem o articulador, estou aconselhando mal o menino, esqueça Marquinhos, fique pelas redondezas da área, se alguém te der a bola avance e finalize. Marquinhos é vítima da superespecialização.

Volto aos primórdios, quando você chegava na peneirada fervilhante e o cara com o apito perguntava  qual sua posição. Poucas as opções: gol, defesa, meio campo e ataque. Você dizia meio campo e tinha que saracotear para todo lado, com os pregos das traves cutucando a sola do pé, implorando a bola, caprichando nos passes. Imagino a tecno-peneirada atual. Você chega com o CD embaixo do braço, o cara faz a mesma pergunta e você responde: Eu sou um meia atacante que avança e chega na frente. Tóóóiiiiiiimmmmmm.

O futebol começa como um brinquedo em que você só vai para frente se for fome de bola, participativo, pegar a redondoca e sair driblando, passando, fazendo gol. Estar com a bola no pé é o maior prazer. Parece que com o tempo alguém classifica o menino, bota um rótulo, ele ganha um espacinho para jogar.

Assim, o Damião de 42 milhões fica plantado dentro da área para fazer o gol e a torcida do Peixe prefere um menino fominha. O Pato faz dois passes para gol e alguém aparece como o descobridor do seu verdadeiro talento. Saiu do Corinthians em fim de carreira. Pato apenas se libertou das amarras, saiu para jogar, sabe jogar, acertou dois, com liberdade fará muito mais.

O amigo que me socorre sabe que eu respeito sua opinião. Ele que observa nossos meninos desde a escolinha está corretíssimo. Eu só estou cheio desse futebol em que a joia não pega na bola 90 minutos, passa o tempo na escolta de um lateral e nós nos comovemos com sua assistência na cobrança de uma falta. Deixem esse piá jogar, se movimentar, se divertir com o jogo, fazer peraltices, assistências, gols, ele vai ser muito mais feliz e nós também. E que todos os santos o livrem do tratamento de canal.

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